Ao lado de Chico Anysio, que vi e admirei uma ou duas vezes
no teatro e em incontáveis ocasiões na telinha da televisão, partiu meu primo
Raul Augusto da Matta. Chico é notícia necessária da mídia e, no jornal, ocupa
toda uma página. Raul é personagem da humilde coluna. Ao jornal às notícias; à
crônica, os fatos da vida e da morte que pertencem eventualmente ao cronista e
por meio dele podem, quem sabe, recompensar o leitor. Mesmo quando o seu centro
é um morto desconhecido da maioria e o texto fala da perda e do luto.
Será preciso lembrar o poeta inglês John Donne, quando ele
descobria que nenhum homem é uma ilha - todo homem é parte de um continente? E
que, quando os sinos dobram, eles têm a autoridade de dobrar para todos nós e
também para o meu primo Raul? "A morte de todo homem", segue o poeta,
"diminui-me porque eu estou envolvido na humanidade."
Estou mais pobre, mas se não fosse por essa morte, eu não
seria alcançado pelo poderoso badalar dos sinos que tocam por todos nós. Meus
olhos estão turvados, mas eu ouço os sons que nos unem e inventam insuspeitas
teias de solidariedade, porque não há como ficar indiferente ao nascimento e à
morte.
Todas as vidas tocam - querendo ou não - muitas outras
vidas. E Raul atingiu a vida de nossa família primeiro na Rua Nilo Peçanha, 31,
no Ingá, casa dos nossos avôs Raul e Emerentina; depois, no apartamento de
Renato e Lulita, meus pais, no Edifício Abaeté, aqui, em Niterói.
A mediunidade da literatura me deixa ver Raulzinho pela primeira
vez. Ele chega, menino alto e de calça curta, segurando uma pequena maleta de
Laranjeiras, Rio de Janeiro. Naquele tempo, eu imaginava a Rua das Laranjeiras
como sendo um laranjal e o Rio de Janeiro como a cidade que tinha todos os
cinemas do mundo na Cinelândia. Raulzinho deixava meus avós orgulhosos e
despertava inveja nos meus irmãos e em mim, porque ele tinha o mesmo nome do
meu avô, o velho Raul, desembargador aposentado e sisudo, cujo prazer mais
visível era fumar um charuto aos domingos. Aos 10 anos, Raulzinho realizava a
façanha de vir das Laranjeiras ao Ingá, em Niterói, tomando bondes e barcas.
Era órfão de pai e visto como audacioso por andar contando somente com ele
mesmo. Logo que chegava, vovó telefonava para a sempre elegante e bonita tia
Celeste, mãe do primo, avisando que estávamos todos juntos, brincando.
Naquele tempo, a morte estava longe de mim. Roberval, o pai
de Raulzinho, havia morrido quando ele era uma criança de 4 anos. Uma variedade
de lúpus o levou em 19 dias aos 39 anos, numa morte que foi o maior golpe
vivido por meus pais, tios e avôs, sobretudo pelo meu avô Raul. O nome do meu
primo falava desse amor feito de obediência, respeito e amizade, tão difícil de
articular entre Raul e esse Roberval roubado pela morte. Raulzinho era o
testemunho vivo dessa ausência. Vocês não sabem o que é não ter pai, dizia ele
para nós, cujo pai - sempre presente - não permitia imaginar essa experiência.
Hoje, como membro da fraternidade dos que enterraram filhos,
estou seguro que a postura soturna de vovô tinha muito a ver com esse Roberval
que foi o primogênito de Raul e Emerentina, dois viúvos que se uniram com
filhos dos seus primeiros matrimônios. Roberval transbordava de gosto pela
vida. Dançava como Fred Astaire e, estudante de Medicina, deu a um viúvo e a
uma viúva, cujo marido foi assassinado na Manaus de 1908, a prova de que a
vida, afinal e a despeito de tudo, valia a pena. Ele está imortalizado numa
fotografia - alto e bonito - ao lado de meu avô Raul, igualmente alto e bonito.
Detalhe: pai e filho estão de chapéu, gravata, colete e de mãos dadas, como
deve ser.
Raulzinho se parecia com o pai. Foi ator e empresário.
Casou-se com a atriz Leina Krespi (que morreu em 2009), teve Patricia e Georgia
e escreveu a peça Caiu Primeiro de Abril, que fez muito sucesso em 1964.
A morte obriga a recordar a beleza e o encanto do primo.
Estudante de teatro, Raul fazia laboratório com as suas apaixonadas. Declarava,
representando, um amor incondicional para, na semana seguinte, desfazer suas
promessas, deixando as moças em lágrimas e às vezes encaminhado-as a nós, os
primos comuns que não moravam no Rio e não possuíam o carisma do ator.
Como não lembrar de Raulzinho, Romero, Fernando, Ricardo,
Renato, Ana Maria e eu dançando com vovó Emerentina, viúva e jogadora
inveterada de pife-pafe e pôquer, capaz de viver com alegria mesmo tendo
enterrado tantos filhos, uma das canções de My Fair Lady na nossa sala de
visitas? Fizemos uma roda ao som do maravilhoso I'm Getting Married in the
Morning, demos as mãos e, com Emerentina no centro, dançamos sacralizando o
apartamento com a música e o amor que amenizam as diferenças e as dores.
Raul está hoje com todos os meus mortos que você, querido
leitor, não conheceu, mas sabe muito bem quem são. A menos que você não tenha
amado, a menos que você jamais tenha ouvido o grande sino que dobra por todo
nós.
Um dia, quando eu também estiver nessa terra dos esquecidos
e, às vezes, lembrados somente para serem definitivamente deslembrados, nós
todos - Raul, Raulzinho, Emerentina, Amalia, Renato, Lulita, Roberval, Rosalvo,
Oyama, Kronge, Marcelino, Silvio, Yolanda, Fernando, Rodrigo, Renatinho, Regina
- e muitos outros; todos esses seres amados, vamos nos encontrar e dançar
debaixo dos acordes do piano de mamãe, na celebração desse casamento combinado
com o fim. O fim sem o qual não seríamos como o Raul desta crônica, amados e
pranteados porque somos tudo: apenas humanos.
Publicado em: O Globo, Rio de Janeiro, 28 mar. 2012, p. A7.
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